04/08/2009
Como o governo Lula pretende resolver o problema da habitação no país Por Pedro Fiori Arantes* e O pacote habitacional "Minha casa, minha vida", lançado em abril de 2009, com a meta de construção de um milhão de moradias, tem sido apresentado como uma das principais ações do Governo Lula em reação à crise econômica internacional - ao estimular a criação de empregos e de investimentos no setor da construção -, e também como uma política social em grande escala. O volume de subsídios que mobiliza é de R$ 34 bilhões (o equivalente a três anos de Bolsa-Família), para atender a população de Por isso, o Governo Lula tem destacado que o investimento, apesar de focado na geração de empregos e no efeito econômico anti-cíclico, tem um perfil distributivista, ao contrário do que provavelmente faria a oposição - um conjunto de obras diretamente de interesse do capital. O objetivo declarado do Governo federal é dirigir o setor imobiliário para atender à demanda habitacional de baixa renda, que o mercado por si só não alcança. Ou seja, é fazer o mercado habitacional, restrito no Brasil a uma parcela minoritária da população, finalmente incorporar setores que até então não tiveram como adquirir a mercadoria moradia de modo regular e formal. Se as "classes C e D" foram descobertas como "mercado" por quase todas as empresas nos últimos anos, ainda havia limites, numa sociedade extremamente desigual e de baixos salários, para a expansão no acesso a mercadorias caras e complexas, como a moradia e a terra urbanizada. Com o pacote habitacional e o novo padrão de financiamento que ele pretende instaurar, esses limites pretendem ser, se não superados, alargados por meio do apoio decisivo dos fundos públicos e semi-públicos, de modo que a imensa demanda por moradia comece a ser regularmente atendida. Para os mais pobres, o subsídio é alto (entre 60% a 90% do valor do imóvel) e o despejo, no caso de inadimplência, é improvável. Para os demais, que entram em financiamentos convencionais, mas também subsidiados, o Governo estabeleceu um "fundo garantidor" para cobrir prestações em atraso e preservar o sistema. O pacote é generoso com todos os que conseguirem nele entrar. Para as construtoras, a promessa é que "haverá para todos, grandes e pequenos", como se manifestou um empresário da construção recentemente. Entretanto, para os sem-teto, o atendimento previsto é para apenas 14% da demanda habitacional reprimida, do nosso déficit habitacional de ao menos 7,2 milhões de casas. A seguir pretendemos apresentar uma discussão preliminar do pacote, a partir das informações, medidas e instruções normativas que foram divulgadas até o momento (julho de 2009), por meio de algumas questões que nos auxiliam a compreendê-lo. 1) Qual é o modelo de provisão habitacional que o pacote favorece? Esse perfil de investimento já indica qual o modelo claramente dominante e a aposta na iniciativa privada como agente motora do processo. A justificativa é a dificuldade do poder público (sobretudo municipal) na aplicação de recursos induzindo o Governo federal a optar por uma produção diretamente de mercado. Desse modo, ao invés de atuar para reverter o quadro de entraves à gestão pública, fortalecendo-a, assume a premissa de que a eficiência está mesmo do lado das empresas privadas. A produção por construtoras, para a faixa de mais baixa renda, entre 0 e 3 salários mínimos por família (até 1.394 reais), é por oferta privada ao poder público, com valores entre 41 e 52 mil reais por unidade, dependendo do tipo de município e da modalidade de provisão (casas ou apartamentos). Uma produção "por oferta" significa que a construtora define o terreno e o projeto, aprova junto aos órgãos competentes e vende integralmente o que produzir para a Caixa Econômica Federal, sem gastos de incorporação imobiliária e comercialização, sem risco de inadimplência dos compradores ou vacância das unidades. O acesso às unidades é definido a partir de listas cadastradas pelas prefeituras. Nas faixas imediatamente superiores, de 2) O pacote irá mesmo beneficiar as famílias que mais precisam? De um lado, o Governo quer que o subsídio favoreça o deslocamento do mercado imobiliário para faixas de baixa renda, onde obtém maiores dividendos políticos, enquanto o mercado quer aproveitar o pacote para subsidiar a produção para classe média e média-baixa, onde obtém maiores ganhos econômicos. Em ambos os casos, o mercado depende do Governo para expandir a oferta e não do sistema privado de crédito, como nos países centrais. Ou seja, é um mercado que não é plenamente capitalista e acaba alimentado pelos fundos públicos. De outro lado, o Governo depende do mercado para implementar uma política social, pois o sucateamento dos órgãos públicos, das secretarias de habitação e das Cohabs, além de questões ideológicas, impedem uma ação dirigida predominantemente pelo Estado. O perfil de atendimento previsto pelo pacote revela, porém, o enorme poder do setor imobiliário em dirigir os recursos para a faixa que mais lhe interessa. O déficit habitacional urbano de famílias entre 3 e 10 salários mínimos corresponde a apenas 15,2% do total, mas receberá 60% das unidades e 53% do subsídio público. Essa faixa poderá ser atendida em 70% do seu déficit, satisfazendo o mercado imobiliário, que a considera mais lucrativa. Enquanto isso, 82,5% do déficit habitacional urbano concentra-se abaixo dos 3 salários mínimos, mas receberá apenas 35% das unidades do pacote, o que corresponde a 8% do total do déficit para esta faixa. No caso do déficit rural, a porcentagem é pífia, 3% do total. Tais dados evidenciam que o atendimento aos que mais necessitam se restringirá, sobretudo, ao marketing e à mobilização do imaginário popular. 3) Como o pacote mobiliza a ideologia da "casa própria"? Evidentemente que não se trata apenas de um fenômeno ideológico. A casa própria é percebida e vivida pelas camadas populares como bastião da sobrevivência familiar, ainda mais em tempos de crise e de instabilidade crescente no mundo do trabalho. Ela cumpre um papel de amortecimento diante da incompletude dos sistemas de proteção social e da ausência de uma industrialização com pleno emprego. Para os políticos, esta operação de marketing se faz necessária para amplificar os dividendos eleitorais, pois grande parte do pacote ocorre no plano do imaginário, dada a disparidade entre a promessa e o atendimento previsto. E, para o capital imobiliário, ela também é um excelente negócio. 4) O pacote favorece a desmercantilização da habitação, enquanto política de bem-estar social? Tal como é desenhado pelo pacote, o subsídio, neste caso, tem a família sem-teto como "álibi social" para que o Estado favoreça, na partição da riqueza social, uma fração do capital, a do circuito imobiliário (construtoras, incorporadoras e proprietários de terra). Na verdade, o subsídio está sendo dirigido ao setor imobiliário tendo como justificativa a "chancela social" da habitação popular. 5) O pacote colabora para a qualificação arquitetônica e a sustentabilidade ambiental dos projetos de habitação popular? Mas não há preocupação com a qualidade do produto e seu impacto ambiental, a não ser a que é posta pelo próprio capital da construção e suas pífias certificações de qualidade, que garantem na verdade sua viabilidade como mercadoria, ou seja, a ratificação da prevalência do valor de troca sobre o valor de uso. As condições materiais e simbólicas de conjuntos habitacionais desse tipo, como se sabe, promovem a segregação dos trabalhadores e a falta de qualidades mínimas de vida urbana e serviços públicos. Quem mora ou visita conjuntos habitacionais assim reconhece neles o mesmo arquétipo dos presídios. 6) O pacote favorece a gestão democrática das cidades e o fortalecimento das administrações municipais? É provável ainda que os municípios sejam pressionados a alterar a legislação de uso do solo, os coeficientes de aproveitamento e mesmo o perímetro urbano, para viabilizar economicamente os projetos. As companhias habitacionais e secretarias de habitação devem estar preparadas para se tornar um balcão de "aprovações" e para doar terrenos à iniciativa privada. 7) O pacote favorece a reforma urbana e a função social da propriedade? Não há nada no pacote, por exemplo, que estimule a ocupação de imóveis construídos vagos (que totalizam 6 milhões de unidades, ou 83% do déficit), colaborando assim para o cumprimento da função social da propriedade. A existência desse imenso estoque de edificações vazias é mais um peso para toda a sociedade, pois são em sua maioria unidades habitacionais providas de infra-estrutura urbana completa, muitas delas inadimplentes em relação a impostos. Não há dúvida que o pacote irá estimular o crescimento do preço da terra, favorecendo ainda mais a especulação imobiliária articulada à segregação espacial e à captura privada de investimentos públicos. Assim, a política habitacional de interesse social se tornará cada vez mais inviável, a menos que o Governo siga dirigindo subsídios aos proprietários de terra. 8) Por que o pacote desconsidera os avanços institucionais recentes em política urbana no Brasil? 9) O pacote habitacional é uma política anti-cíclica acertada? Do ponto de vista da quantidade dos empregos gerados, não há dúvida de que, pela sua baixa composição orgânica (poucas máquinas), a construção civil é uma empregadora maciça. Mas qual a qualidade deste trabalho? O pacote não faz nenhuma exigência em relação às condições de trabalho nos canteiros (sabidamente precárias e cheias de riscos) e não há medidas para fortalecer a legislação e órgãos de fiscalização. A negociação entre Governo e construtoras para definir o menor custo viável por unidade deverá redundar, ainda por cima, em um aumento da exploração dos trabalhadores. O tempo lento dos investimentos habitacionais e a preocupação com a rentabilidade privada descaracterizam o pacote como política anti-cíclica keynesiana. Uma opção teria sido a criação de frentes de trabalho diretamente mobilizadas pelos Governos, com gastos dissociados do rentismo imobiliário. Além disso, é preciso lembrar que o Governo mantém o superávit primário, mesmo que em menor proporção, quando a base da política anti-cíclica é a criação de déficit público. Se considerarmos que o pacote não é, na verdade, a melhor política anti-cíclica, o "emergencial" e o "quantitativo" devem deixar de ser razões absolutas para ser condicionados por determinações mais substantivas, de modo a que prevaleçam critérios urbanos, sociais e ambientais mais adequados para se avaliar e implementar uma política habitacional. 10) O pacote fortalece os movimentos populares? Os recursos disponibilizados para a política gerida por entidades sem fins lucrativos, isto é, pelas organizações populares, correspondem a apenas 3% do total do subsídio e é restrita à faixa de 11) O pacote garante a isonomia entre campo e cidade no atendimento à moradia? A precarização da política de habitação rural exprime uma incoerência da política habitacional com a de desenvolvimento regional no país, pois favorece o êxodo rural e o crescimento das precárias periferias urbanas. Considerações finais Programas de reforma urbana sensatos já foram formulados no Brasil nos últimos 50 anos mas, a despeito dos esforços de movimentos populares e de técnicos progressistas, pouco se tornaram efetivos. A versão integral do texto encontra-se disponível no site do Correio da Cidadania. (*) Arquiteto(**) Urbanista
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